31 de dezembro de 2015

Agora somos
os rostos que ocupam
os quadros na parede
sem o menor assombro

Nas páginas dos diários
na vida entre os dentes
na árvore cheia nomes
que nem lembramos mais
Somos o que não fomos ontem.

bença mãe
bença pai
Nós também
séculos de silêncio
talvez mais.

Anne Cerqueira
Dez.2015

16 de novembro de 2015

A vida espera na esquina
enquanto você tenta decifrar o último enigma
a canção que não entendeu e era
na sua língua.
A vida parece menos forte
aos
poucos.
Ela  cansa e você
nem nota
destoante
zonza
tonta
fingindo prestar atenção.

Anne Cerqueira
2015

11 de novembro de 2015

Poema

Abro a janela pela manhã
e lá está o poço envolvendo a casa.
O sol é o sol. As estações independem do teu comando
como se dissessem: vá, não há medo
mas o barco é de chumbo.

Então sigo com a vida que me espera.
O café da manhã,
o almoço com a família
os livros ainda sãos. Não na estante
nem na mesa ou atrás da porta
mas na memoria que agora
conta com a ajuda severa da natureza.

Penso: o que te livra do naufrágio?

Um barco de chumbo.
A quilha
torta.



Anne Cerqueira
novembro, 2015

24 de outubro de 2015

Batata coringa


Meu marido vive dizendo que vai me dar uma passagem de ida para o Peru, pois lá se cultiva cem ou duzentos tipos diferentes de batata. Hoje, na hora do almoço, lembrei disso quando percebi que coloquei no prato três tipos de alimentos diferentes  e todos a base de batata. Adoro o sabor e a versatilidade. Se eu fosse a chef Rita Lobo diria que o tubérculo é um alimento coringa: não pode faltar na cozinha e vai bem em quase todas as receitas. Ovo de galinha é outro alimento coringa. Então me lembrei de um vídeo de Paulo Gustavo vestido de dona Hermínia, personagem de minha mãe é uma peça. Ela foi passar férias num desses locais bem bonitos e badalados (Búzios ou Angra, nem sei) e ficou o tempo todo percorrendo vendas e armazéns em busca de uma dúzia de ovos que tinha esquecido de levar para a praia.
Sempre rio horrores porque é engraçado mesmo. Mas no fundo me dá dó porque revela a insustentável natureza humana, como cabe ao humor. A que tem tudo que precisa e nem percebe. A que quer se divertir e nem sabe como.

17 de agosto de 2015

Esboço

As pessoas tem uma vida para viver,
com certeza, elas tem
nas ruas, nos bares, no lusco
fusco das tardes
iguais a essa, sem literatura,
sem dourar pílulas, simples e
só.
Tarde inerte que nem aço
no trânsito
nas salas
nas frestas.
As pessoas
com certeza tem uma vida para viver.
Nesse mundo de meu Deus, uma vida
para viver
é uma maravilha
e é certo que todos tem.
E esse cansaço, assim, meio calado
e esse mapa que ninguém lê.

Anne Cerqueira
2015

19 de maio de 2015



Nem sempre há algo para ser dito
meu Deus
entre um gole e outro de café
e a louça para lavar.
O dia atropela tudo
e o rio visto pela janela flui
indiferente a mim e a você
e ao fato de ser rio
Então é isso. Os penduricalhos
de vidro
trincam sob o vento
enquanto a vida
sopra lá fora.
Não há mesmo muito a ser dito,
meu Deus.
Desconfio.
Anne Cerqueira.
2015

6 de maio de 2015

Ninguém me parece triste
com suas roupas de aço
seus relógios de ouro
marcando as mesmas horas

Ninguém parece reparar
fora de suas janelas
a paisagem ou além dela
seus relógios de ouro
suas roupas de aço

Penso, talvez não reste mesmo
muito além disso
as casas sobre as rochas
os vultos nas montanhas

o homem que grita
sem ser visto

e nós pisando as pedras
desse rio caudaloso.

Ninguém me parece triste
dessa tristeza que dá nó por dentro
com suas carapuças de couro
suas roupas de aço

Protegidos contra os ventos
e todo tipo de intempérie
os mais rudes sentimentos
ou os mais belos.


Anne Cerqueira